Oi tudo bem?
Em janeiro, foi lançado o filme A Sociedade da Neve na Netflix (ou seria nO Netflix?), mostrando a história trágica e heróica - para alguns - dos sobreviventes de um acidente de avião nos Andes. O título do filme é bem sugestivo porque mostra como realmente se formou uma sociedade ali, com suas regras específicas para a realidade imposta no local e que valiam somente para aquela situação, naquele local, com aquelas pessoas (apesar de algumas pessoas até cogitarem comer o coleguinha de trabalho na hora do nervoso). E foi pensando nisso que me vi ontem em meio a sociedade do hospital.
Eu explico.
Desde 2022 - quando pappy infartou e passamos por toda aquela saga - o garoto começou a ter problemas digestivos sem causa aparente. Do nada começa com ânsia, náusea, dor abdominal... Já passamos por pronto socorro, alguns médicos e ninguém fecha algum diagnóstico. Para mim, é problema de alimentação e falta de exercício mas vai falar isso para ele! "Não tenho tempo para fazer isso", "Como a hora que o serviço deixa", "Ah, agora não posso mais comer lanche?!" e por aí vai.
Em agosto de 2023, o gastro que ele estava indo pediu uma endoscopia mas o exame não deu certo porque o estômago ainda não estava vazio. Então, repetimos o exame novamente ontem.
E aí, começa a saga.
Primeiro, porque o médico do garoto pede para fazer o exame no hospital. Eu já fiz duas endoscopias na vida e sempre no consultório; como eu brinco, endoscopia raiz: só espirra um anestésico na garganta, enfia o cano, olha o estômago, tira e você vai embora. Sozinho; não tem essa de levar acompanhante. No hospital, tem todo um preparo: não faz o exame se não tiver acompanhante, vai pro centro cirúrgico, tira tudo (tudo mesmo), mede pressão, temperatura, oxigenação, coloca oxigênio no nariz, sedação na veia e tem que esperar uns 30 minutos depois do exame para liberar.Aqui na região - acho que em todo o Sudeste e Sul do país - estamos com uma severa epidemia de dengue que tem superlotado as unidades de saúde e hospitais. Então, o exame que estava marcado para 15h foi antecipado para 13h30 por conta de atender a superlotação que estava no hospital. O garoto estava em jejum desde as 21h do dia anterior e sem água desde às 10h - isso em um dia mega quente em que ele precisou trabalhar de manhã.
Chegando no hospital, completamente lotado, já fomos logo encaminhados para o centro cirúrgico. Ele entrou e eu fiquei na sala de espera. E ali, minha gente, as regras são outras.
Eu, que sou a pessoa que não converso, começo a papear e pegar amizade com todo mundo igual mammy. Tinha a senhora que estava esperando a filha grávida dar a luz - e estava terminando o último casaquinho do neto. Tinha o filho esperando a mãe fazer um procedimento rápido. Tinha a esposa esperando o marido fazer a colonoscopia. Tinha o marido esperando a mulher fazer cirurgia da vesícula. Tinha a moça esperando alguém - sei que era homem pelo nome que vieram chamar, mas ela dormiu o tempo todo de espera na cadeira mais desconfortável do mundo. Tinha a faxineira reclamando que o bebedouro estava vazando água e ninguém vinha arrumar.
Ali se cria uma sociedade nova, onde todo mundo se conhece, conversa sobre os assuntos mais sem noção e vira amigo por algum período, que pode se tornar horas.
Enquanto estávamos lá, chega um cirurgião:
- Acompanhante da senhora Regina
- Sim, sou eu. É a minha mãe.
O cirurgião se aproxima e delicamente passa o braço pelas costas do garoto.
- Então, tivemos uma intercorrência durante o procedimento...
- Mas ela está bem, doutor?
- Sim, mas teremos que observar porque a pressão dela variou bastante.
- Não, doutor. Ela não tem problema de pressão. Falaram que o exame era rápido
Nessa hora, todo mundo que estava esperando um "exame rápido" arregalou o olho.
- Sim, mas ela teve reação da anestesia e precisamos controlar a pressão por conta do coração....
Nessa hora, todo mundo que sabia que ia rolar anestesia no exame arregalou o outro olho
- Mas como ela tá, doutor?
- Ela está indo para UTI para obs...
- Não, uti não. Ela ia para casa! Ela ia fazer um exame rápido!
Aí, o cirurgião foi encaminhando o filho para fora da sala da espera e ficou aquele clima de preocupação, um olhando para cara do outro: afinal, ninguém tinha informação de ninguém que tinha passado pela porta do centro cirúrgico.
Em questão de segundos, a recepção do centro cirúrgico lotou: quero saber do meu marido, quero saber da minha mãe, como está a minha esposa, cadê meu filho... coitada da recepcionista.
Descobri que o garoto às 16h ainda aguardava para fazer o exame, sem água e sem comida desde às 10h mas que "estava sedado desde às 13h30, então não precisa se preocupar". Como não me preocupar? Sedação por tanto tempo não faz mal? Ah, mas tem uma enfermeira acompanhando, segundo a recepcionista. Grande alívio! #sqn
Conforme as horas passavam, alguns ficavam mais estressados, outros começavam a chorar e o coração disparava a cada vez que a porta do centro cirúrgico abria. "Acompanhante de....". Alívio para um que ia embora, preocupação para os outros que seguiam na espera. E, quanto mais a sala de espera esvaziava, mais angústia dava - afinal, cabeça de ansioso só pensa o pior.
Até que, finalmente, às 17h45, o garoto apareceu: de cadeira de rodas, mas bem consciente, e graças a Deus o exame deu certo.
Saímos eu e ele e o outro casal que o marido foi fazer colonoscopia. Ainda ficou o marido esperando a cirúrgia de vesícula da esposa, mas ele acabou ficando sozinho. Espero que tudo tenha dado certo.